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quarta-feira, 16 de julho de 2008

Orgulho e Preconceito



Braulia Ribeiro



Um dos prazeres de pais cristãos é ensinar seus filhos pequenos a cantar musicas cujas mensagens imprimam em suas mentes conceitos que mais tarde serão necessários em suas vidas. Eu gostava de esgoelar com os meus: “Meu coração era sujo”, “O sabão lava meu rostinho”, e, claro, não podia faltar, “Cuidado, olhinho, o que vê/ o Salvador do céu está olhando pra você...”

Recentemente comecei a me deixar assustar por fantasmas, não sei se fruto dos anos ou das circunstâncias. Na jornada da vida, as críticas, as altas expectativas e os baixos níveis de compromisso me deixaram atada a amarguras, feridas e lepras. Os fantasmas dos irmãos que não perdoei me atormentam, cutucam, me visitam nas noites insones, me tiram a paz e me azedam o suco gástrico, causando dor física. Até agora nunca tinha me prendido a nada assim. Caminhei até aqui numa jornada de perdão constante, quase alienado, que se re-expunha, se re-feria inúmeras vezes, mas continuava presente. Devo dizer que esta vida “delirante” do perdão é mais feliz do que a vida “racional” da amargura.

Como diz Derrida, o perdão que exige troca social (o outro se arrepende, portanto eu posso perdoá-lo) não pode ser chamado de perdão. O perdão de pés no chão, que se precavê, que reforça defesas, que cobra arrependimentos, é um mecanismo social humano, nada mais. O perdão divino e verdadeiro, o único que merece esse título é aquele incondicional, excepcional e extravagante. Perdôo porque sim. Perdôo total e completamente, sem cobranças e sem resquícios. Perdôo porque as pessoas não mudaram e não merecem ser perdoadas. Aliás, o perdão não tem objeto, basta-se a si mesmo. Enquanto eu não entendi isso, sofri interiormente por alguns meses na mansão assombrada da família Adams.

Dias atrás minha colega Carol veio me visitar. Amiga de muitos anos, risada alta, Carol chegou sem sorrir, fixou em mim seus olhos azuis e disse, tirando da testa a mecha grisalha para que eu visse, sem duvidar, a centelha que eles queriam me passar: “Bráulia, estava orando por você e Deus me disse que ele está te vendo.” Conversamos um pouco mais e ela se foi.

Deus me vê! Saí da sala me sentindo a heroína do romance de Jane Austen, observada à distância por Mr. Darcy, sabendo reconhecida por ele a beleza, adivinhadas as curvas nas muitas pregas do vestido, os lindos seios num decote que revela o colo e nada mais. Ainda consigo seduzi-lo. Sou a noiva, a esperada. Julgava-me a preterida, a escrava; no entanto o Rei me vê como imaculada, a noiva desejável. Ele me vê.

Aquela noiva da “Valsinha”1, sobre quem um dia escrevi com esperança, fez sentido outra vez. A igreja soterrada de paradoxos sociais, enredada em seus orgulhos e preconceitos, apagada na burca de sua ignorância, se ergue novamente, remexe no armário e reencontra suas vestes de festa.

Os olhos dele não me vigiam para me acusar, me perscrutar ou me envergonhar. Eles não me desnudam impudicos como os olhos dos homens sentados em um bar fazem com as distraídas que passam. Eles não me consomem em demanda egoísta de prazer pessoal, se é que a metáfora ainda cabe. Eles me vêem inteira, com bondade e respeito, me vêem como o cavalheiro inglês, antevendo-me a minha beleza sublime, para mostrar-se forte.

Mesmo me achando questionadora, comprei, sem perceber, a coerção moral infantil através do conceito do Deus amedrontador. Comprei para mim e vendi a meus filhos a idéia de olhos que vigiam, cobram e julgam. Mas a imagem principal de nosso noivo não é esta. São seus olhos que embelezam a noiva com seu perdão excepcional, esquizofrênico e divino. É ele que a embeleza, não ela a si. A idéia prevalecente na Palavra sobre ele é de embevecimento, carinho, auto-sacrifício, misericórdia e benignidade. A religião o transforma em juiz. Sentir seus olhos sobre mim (Sl 33.18; 34.15; 2Cr 16.9) me revelou novamente seu amor. E à luz deste amor caminho devagar para fora da mansão das sombras das amarguras e desesperanças.




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