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quinta-feira, 10 de julho de 2008

Para não perder a glória de chorar

PARA NÃO PERDER A GLÓRIA DE CHORAR
LUÍS CARLOS BATISTA

O protestantismo brasileiro aprendeu a rejeitar a cultura brasileira. E quando o tema é música popular brasileira a rejeição é ainda mais marcante. Se não é música com temática evangélica, então sua origem é satânica. Trata-se de uma concepção teológica míope. São desconsiderados conceitos teológicos importantes como a graça comum e a imago dei.

A graça comum nos ensina que Deus derrama dádivas sobre todos os seres humanos. Ele deixa a chuva cair sobre bons e maus (Mt 5.45). A graça comum nada tem haver com a graça que salva o pecador. Trata-se das dádivas que Deus dá independente da fé. Por este prisma podemos considerar o talento de um músico, de um professor, de um médico, como dádivas divinas. Frutos da graça comum.

O conceito de “imago dei” nos ensina que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1.26-27). Há algo de Deus em todos os seres humanos. É claro que o pecado manchou esta imago dei original, mas não a destruiu totalmente. Assim um ser humano sem a fé em Jesus é capaz de criar coisas maravilhosas, como também é capaz de atos pecaminosos terríveis. Ele vive nesta tensão.

Diante destas duas concepções, podemos então olhar para os grandes talentos da música popular brasileira de forma menos julgadora e maniqueísta. Um disco como “Construção” (1971) de Chico Buarque só pode ser gerado pelo fato da graça comum ter atingido o compositor brasileiro. Uma obra como esta não é diabólica, muito pelo contrário, carrega dentro si algo de Deus. Só pode ser divina a inspiração para a força poética das letras, a beleza das melodias e a inventividade dos arranjos. E aqui não estou falando de salvação ou relacionamento pessoal com Deus, falo de graça comum.

Inspirado em um artigo que li do Pr. Ed René Kivitz, quero combinar música brasileira e teologia cristã. E escolho o grupo carioca Los Hermanos. Um raro raio de criatividade que brilhou no pobre cenário atual da música brasileira, envenenado por axé, pagode, funk e similares. O grupo teve uma estréia tímida com o disco homônimo de 1999. O sucesso veio com a mediana “Ana Júlia”. Foi, porém, com o segundo disco (“Bloco do Eu Sozinho”) de 2001 que eles mostraram todo o seu talento. Forjaram um caldeirão sonoro riquíssimo com rock, pop, MPB regado a um bom instrumental com metais contagiantes. O disco seguinte (“Ventura”) de 2003 comprovou de vez o absurdo talento musical do grupo. Não ocorreram mais sucessos radiofônicos como no primeiro disco, mas em termos de qualidade o grupo dava saltos fabulosos. O último disco (“4”) de 2005 decepcionou um pouco, um tanto morno demais. Aí veio a separação, porém a indelével marca do grupo já foi deixada na música popular brasileira.

E neste meu ensaio de teologia e MPB, escolho uma canção do terceiro disco do grupo: “O Vencedor”. A letra fala de pessoas que se consideram fortes e vitoriosas. Pessoas que caminham do lado oposto do autor da letra. Estes vitoriosos estão salvos de sofrer, crêem que perder é ser menos na vida e não gostam de chorar. São bravos e fortes, mas na verdade escravos. Não há espaço em suas vidas para o sofrimento, o choro, o aprender com as derrotas. São os vencedores conforme os padrões da atual sociedade.

O autor na letra diz que “Eu que já não quero mais ser um vencedor \ Levo a vida devagar pra não faltar amor”. Ele rejeita a vitória que não dá espaço para a dor, para o sofrer, para o amor. E prefere ser alguém que ama do que um bravo e inabalável vencedor. Como amar sem sofrer e chorar? Se para vencer não há espaço para tropeços e lágrimas, então não há espaço também para o amor. E por fim nosso autor conclui que “E eu que já não sou assim \ Muito de ganhar \ Junto às mãos ao meu redor \ Faço o melhor que sou capaz \ Só pra viver em paz”. Novamente rejeita a vitória dos bravos, e prefere o caminho da paz.

Podemos concluir que para o autor da letra, a vitória sem sofrimento e sentimento não é na verdade uma vitória. Do que adiante vencer sem amor e paz? Nas entrelinhas da letra podemos perceber que a verdadeira vitória passa por sofrimentos e sentimentos, e é conduzida por amor e paz. É claro que o grupo Los Hermanos não fala especificamente de teologia em sua letra, mas é possível traçar um interessante paralelo entre a letra e a teologia cristã.

O conceito bíblico de vitória também vai na contra-mão do conceito atual de vitória. A “vitória não é dos fortes, nem dos que correm melhor”, já dizia uma antigo hino evangélico. Paulo diz que quando está fraco é que ele torna-se forte (II Co 12.7-10). Jesus pregava que felizes são os pobres, os que choram, os que são perseguidos (Lc 6.20-22). Para o cristão o caminho da vitória não passa por dinheiro, poder, fama. Passa sim pelo amor de Deus que nos leva a amar o próximo. E como amar o próximo sem vivenciar sofrimento e sentimentos intensos? Como amar o próximo nos colocando como bravos e indestrutíveis? E quem trilha o verdadeiro caminho do evangelho vive em paz. Na tríplice paz descrita no Novo Testamento: com Deus, consigo mesmo e com o próximo.

Viver a vitória descrita no Novo Testamento é diferente de ser um vencedor em nossa sociedade. Paulo diz que “somos mais do que vencedores, graças aquele que nos amou” (Rm 8.37). Os comentaristas destacam que o termo “amou” no original grego está em um tempo verbal que indica um evento histórico específico. Só pode ser a cruz de Cristo. No que foi para a sociedade da época a grande derrota de Cristo, na verdade foi sua vitória. E somos vencedores graças a esta vitória. Porém a cruz só pode ser vista como vitória pelos olhos da fé, pelos olhos humanos não passa de uma grande derrota.

Um verso da canção do Los Hermanos é realmente digno de nota aqui: “Olha lá quem sempre quer vitória \ E perde a glória de chorar”. No Novo Testamento o verdadeiro sofrimento é realmente glorioso. Paulo fala em sermos co-participantes do sofrimento de Cristo (Rm 8.17). O triste é constatar que muitos cristãos preferem à vitória baseada no dinheiro, poder e fama, e assim perdem a glória de chorar. “Bem aventurado os que choram”. Preferem os jatos, iates, carros do ano, malas cheias de dinheiros. É a doentia pregação da Teologia da Prosperidade sobre vitória financeira. Esta vitória eu não quero, prefiro a vitória da cruz e a glória de chorar.




Segue abaixo a letra na íntegra de "O Vencedor" (Los Hermanos)

Olha lá quem vem do lado oposto
E vem sem gosto de viver
Olha lá que os bravos são escravos
Sãos e salvos de sofrer
Olha lá quem acha que perder
É ser menor na vida
Olha lá quem sempre quer vitória
E perde a glória de chorar

Eu que já não quero mais ser um vencedor,
Levo a vida devagar pra não faltar amor
Olha você e diz que não
Vive a esconder o coração

Não faz isso, amigo
Já se sabe que você
Só procura abrigo
Mas não deixa ninguém ver
Por que será?

E eu que já não sou assim
Muito de ganhar
Junto às mãos ao meu redor
Faço o melhor que sou capaz
Só pra viver em paz.


Fonte:http://www.hojeteologia.blogspot.com/

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