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terça-feira, 27 de maio de 2008

ONIPOTÊNCIA, MILAGRE E VIDA


ONIPOTÊNCIA, MILAGRE E VIDA

Deus é onipotente. Aliás, não crer na onipotência divina seria igual a desacreditar na própria existência de uma divindade – um deus sem poder não é Deus. Milagres acontecem. Não crer em milagres seria igual a desacreditar na possibilidade dasações divinas. – um deus imóvel é um absurdo conceitual.

Deus não só possui todo o poder como nEle se origina tudo o que se entende como poder, capacidade, criatividade. Deus pode fazer qualquer coisa e tem a liberdade de agir como, quando e onde quiser.

Antecipo essas verdades porque procuro discutir a plausibilidade do milagre no cotidiano; quero saber se é possível ter um chão existencial presumindo as intervenções divinas. A partir desses questionamentos, quero perceber se é função do sacerdote ensinar que se organize a vida esperando livramentos divinos.

Realmente não há como negar, a Bíblia contém numerosos exemplos de livramentos, salvações, resgates espetaculares e curas divinas. Para evitá-los seria necessário um enorme exercício de relativização das Escrituras. Porém, algumas perguntas insistem: o sujeito religioso deve conceber a sua existência com expectativa de intervenções sobrenaturais? Deve-se procurar reverter o diagnóstico de uma doença terminal pela oração? Um fiel deve apelar para Deus se quiser ganhar um litígio judicial? Um pastor deve ensinar que a vida só será possível com constantes intervenções de Deus? As pessoas experimentam “upgrades”, levam vantagem sobre os demais, quando obedecem aos mandamentos?

Essas inquietações não negam que Deus tem toda força e pode fazer o impossível. Elas buscam, tão somente, repensar a cosmovisão religiosa que contempla a vida com ingerências do alto; confrontam as lógicas de que homens e mulheres carecem de socorros emergenciais de Deus para que a existência seja minimamente possível.

É função do pastor ajudar as pessoas a viverem com fé, mesmo quando não existe a possibilidade de milagre. Diferente do paganismo, a cosmovisão cristã convoca que se confie em Deus para enfrentar as contingências da vida com coragem. Nesse conceito, fé não antecipa prodígios sobrenaturais. Os cristãos parecem, entretanto, carminhar noutra direção; urge que se resignifique fé.

Fé não se limita a acreditar em acontecimentos extraordinários. Partindo-se da aceitação de que existe um Criador e Controlador do universo, esta verdade é axiomática – e consta em todas as tradições religiosas monoteístas, inclusive as judaicas e islâmicas

Sempre que se reflete sobre milagre as reações são emotivas. “Deus não pode intervir na vida das pessoas, principalmente, as mais necessitadas?”. Lógico que pode; isso já ficou estabelecido nos dois primeiros parágrafos acima. Deus pode tudo; Ele é o Todo-Poderoso.

A questão é se Deus quer que a vida humana se organize com ocasionais intervenções suas. Proponho que não. Ninguém deve viver ou preparar-se para enfrentar o “dia mal” (Efésios 6.13) com expectativa de que virão auxílios sobre-humanos aliviando o sofrimento.

Dois conceitos também precisam constar nessas elaborações: graça e justiça. Graça, muito mais que um jargão teológico é uma descrição do jeito como Deus lida com a humanidade. O amor de Deus é gratuito, universal e unilateralmente derramado sobre todos. Ele abençoa sem exigir méritos; seus afetos independem da qualidade moral ou de práticas religiosas das pessoas. Deus não ama como reação. Também não faz acepção, não discrimina; não premia uns para abandonar outros ao léu; não “elege” uns poucos para voltar as costas para a maioria que nasce como “filhos da ira”.

Portanto, se e quando acontece algum milagre, com certeza não vem como resposta de oração – qualquer mérito anula a graça e as suas intervenções não visam abençoar os “eleitos” – já que não faz acepção de pessoas.

As intervenções divinas, se e quando acontecem, estão ligadas a a um propósito eterno do coração de Deus e as pessoas não têm qualquer ingerência sobre elas - milagres são mistérios.

Fé pode ser compreendida como coragem existencial. No reconhecimento de que a vida é imprevisível, fé aposta nos valores do Evangelho; que suas verdades e princípios são suficientes para enfrentar a vida com tudo o que acontecer de bom ou de ruim. Fé é um convite a confiar no propósito eterno de Deus - Ele quer ter uma família com filhos parecidos com Jesus de Nazaré.

A religiosidade que promove a expectativa de livramentos tem sido responsável por processos de infantilização; homens e mulheres, acreditando que a história ficará diferente com milagres são impedidos de iniciativas transformadoras.

Eu creio em milagres, mas não espero por eles; celebro a onipotência, mas recuso-me a apelar para qualquer força que me dê vantagem sobre os outros; não nego a soberania de Javé, mas não acredito que a vida esteja presa a trilhos inexoráveis; oro, mas não entendo que a função da prece se restrinja a “conseguir mais bênção”.

Fé é aceitar o desafio de viver como ovelha no meio de lobos; enfrentar um mundo cheio de tribulações; "receber bom testemunho, sem, no entanto, receber o que havia sido prometido" (Hebreus 11.39).

“Mesmo não florescendo a figueira, e não havendo uvas nas videiras, mesmo falhando a safra de azeitonas, não havendo produção de alimento nas lavouras, nem ovelhas no curral nem bois nos estábulos, ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus da minha salvação” (Habacuque 3.17).

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim


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